(Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)

Senador Omar Aziz, olhe para o relatório com o coração

16 de outubro de 2021, 09:00

Quando começaram, há cerca de cinco meses os trabalhos da CPI da Covid-19, eu disse no programa que dividia com o colega Claudio Passos, no canal “Resistentes”: ‘ganhamos uma trincheira’. E assim foi. Não tínhamos as ruas organizadas, àquela altura os movimentos estavam insipientes. Foi o nosso escoadouro, a janela por onde o Brasil viu desfilar de forma crua, às vezes dissimulada em silêncios cúmplices, a nossa dura realidade. Por ali passaram os nossos mortos e os vivos, muito vivos, que atuaram para fazer dar errado o combate à pandemia no país.

Há dias estava para ouvir a entrevista da jornalista Eliane Brum, concedida ao canal “Tutaméia”, mas sem tempo para realmente escutar, como gosto. Hoje, e não por acaso, parei para ouvi-la falar do seu novo livro: “Amazônia o Centro do Mundo (não sei se é assim mesmo, porque apenas ouvi, não vi escrito o título). E o que tem a ver o seu livro com a CPI? Tudo.

Eliane coloca a Amazônia em seu devido lugar, como o umbigo verde do planeta. Que Nova York que nada… O mundo nos olha. Ou cuidamos daquela usina de vida, ou não teremos mais o que fazer com o futuro.  

Enquanto a ouvia falar dos povos indígenas, me veio uma cena da qual jamais esqueci. Estava eu no Galeão – é assim que o chamo, ainda –, para embarcar para mais uma das minhas inúmeras viagens a trabalho, quando vi passar diante de mim uma imagem no mínimo impactante. Um senhor em trajes sociais, segurando em uma das mãos um conjunto de passagens aéreas, enquanto com a outra conduzia, amarrados por um barbante, uma “roma” de oito indígenas, em short “Adidas” e camiseta. Formavam um estranho cordão, seguindo aquele sujeito. Submissos. Ordeiros e silenciosos. Havia no grupo duas mulheres e duas crianças. Pensei: eles não têm autonomia para viajar sozinhos, mas precisa ser assim? Fiquei com um nó na garganta vendo aquele deslocar inexplicável e anacrônico, quando iam pegar um avião. Um objeto da modernidade.

Eu também ia embarcar em um avião. E, por coincidência, para uma viagem à Reserva de Mamirauá, a seis horas de barco de Tefé, que acabava de ser decretada “reserva biológica”. Não sei qual o destino do grupo de indígenas preso pelos pulsos a um barbante. O meu, foi a uma paisagem deslumbrante. Cheguei lá ao cair da tarde. A “voadeira” – pequeno barco de metal, a motor –, se deslocava pelos igarapés. Naquele horário a floresta se preparava para dormir.  

Assim, ao longo das margens as famílias de jacarés, mamãe e filhinhos – se perfilavam em grupos sob os últimos raios de sol. Os tuiuiús, tingiam as árvores de negro, os tucanos, coloriam a árvore vizinha e assim, como num código de ética firmado em cartório, cada tipo de pássaro ocupava uma copa, resultando num espetáculo tão exuberante que me levou às lágrimas. Todo aquele show de cores não cabia nos meus olhos, que transbordavam num choro silencioso e agradecido. Eu vi a Amazônia em festa. Eu ouvi os mais belos sons da minha vida. Um balé de todo tipo de macacos se deslocava pelo alto, soltando guinchos que se confundiam com o som das aves e me estonteavam de deslumbramento. São imagens que você leva com você. E nem fala delas porque as palavras faltam.  

Uns anos antes, quando por questões econômicas fecharam o Caderno de Educação que eu editava em O Dia, eu estava começando a preparar uma edição sobre Educação Indígena, inviabilizada pelo fim do caderno. Guardei a pauta e comentei com a Lucy Barreto, que ainda não botava muita fé em documentários, que podíamos transpor a pauta para o cinema. Ela apostou e assim fizemos. Criteriosa, ela colocou para me assessorar na escrita do roteiro, antropólogos e pedagogos. Havia uma tendência no MEC de “branquear” o ensino nas aldeias. Em contato com lideranças de Norte a Sul, retratamos a outra realidade, a de que era preciso mantê-los em contato com a própria cultura, pois eram e necessitamos que continuem a ser, os guardiões da floresta.

Nesta semana, quando o relatório da CPI entrou na reta final, vimos, não com total surpresa, que há divergências entre o relator Renan Calheiros, que quer relacionar a prática de “genocídio” contra os indígenas, entre os crimes cometidos por Bolsonaro.  O presidente da comissão, Omar Aziz, tem outra opinião. Aqui, abro um espaço para chamar a atenção de que Aziz é amazonense. Aziz não vê motivos. Quisesse vê-los, bastaria passar os olhos no estudo da professora titular Deyse Ventura, feito para a USP, onde está tudo relacionado e documentado, como ações deliberadas do governo, para sustentar a prática de “imunidade de rebanho” entre os brancos e extermínio, entre os povos originários, privados que foram de assistência, orientação médica, equipamentos e água potável.

Considerando que ele suspeitasse que esta é uma fonte “tendenciosa”, porque os conservadores têm um pé atrás com as universidades – segundo o ex-ministro Abraham Weintraub, um reduto comunista -, bastava buscar o Diário Oficial da União, de meados de julho de 2020. Lá encontraria a prova material do crime. Os vetos ao fornecimento de água potável para as aldeias, a negação do envio de respiradores e o deslocamento de brancos para a região ainda praticamente virgem do vírus, com a nítida intenção de fazer com que o contágio se fizesse o mais rápido possível. Não fora por sua origem à sombra da floresta, o presidente da CPI deveria reconsiderar a sua posição. De acordo com o que decalou ao Jornal Estado de São Paulo, o relatório não será votado “com o fígado”. Está certo. Não precisa de azedumes. Mas se quiser ser justo, Omar Aziz, basta votar com o coração.

Escrito por:

Jornalista. Passou pelos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora-pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" e "Imaculada", membro do Jornalistas pela Democracia

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