Ricardo Stuckert | © Sputnik/Mikhail Klimentyev/Kremlin (editado)

Ala da esquerda tem de decidir: quer ganhar a guerra de Putin com a Rússia ou vencer a eleição no Brasil com Lula?

8 de março de 2022, 16:50

O Brasil talvez seja o único país no mundo que tem uma fotografia do momento exato em que foi apresentado ao ponto do inflexão de sua democracia: aquele flagrante de outubro de 2014, encerrado o 2º turno, quando Aécio Neves se deixou fotografar diante de uma tela de TV com sua turma, esperando os primeiros resultados parciais das urnas presidenciais, e descobriu perplexo que a vontade majoritária do povo foi a reeleição de Dilma Rousseff. A partir dali, embalado pela recusa antidemocrática de Neves, que não reconheceu a derrota para Dilma, o índice que mede a normalidade institucional-democrática brasileira, só declinou.

Os picos de afronta ao sistema de freios existente na Constituição, lançado mão pelos constituintes de 1987/88 para desestimular retrocessos como os de 1964, foram o impeachment sem crime de responsabilidade de 2016, a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 surfando uma onda de desligamento dos circuitos democráticos a partir do Poder Judiciário, e o 7 de Setembro de 2021. 

Movendo-se por espasmos, a parcela majoritária da sociedade que havia sucumbido ao lawfare contra o ex-presidente Lula e contra o PT em geral, às fakes news que tinham envenenado o ambiente da Política e ao cansaço das derrotas em sequência, começou a despertar no momento em que o Supremo Tribunal Federal admitiu rever os erros colegiados da Justiça e restaurar os direitos políticos do ex-presidente. E não apenas isso: determinou a parcialidade e, por conseguinte, a culpa do seu algoz, o ex-juiz Sérgio Moro, agora ele próprio investigado pelo Ministério Público de Contas da União.

“Lula, livre”, a bandeira que aglutinou os democratas dispersos pelo país e trouxe para cá diversas personalidades internacionais simpáticas à causa e espantadas com o retrocesso institucional brasileiro, catalisou por alguns anos os anseios da esquerda nacional. O ritmo acachapante das vitórias judiciais, a velocidade de água rolando morro abaixo da reputação dos outrora “paladinos da moralidade” da extinta “República de Curitiba” e a crescente popularidade do ex-presidente na pré-campanha para 2022 bastaram até aqui. A pandemia e os absurdos anti-ciência, anti-humanitarismo e anti-saúde pública perpetrados por Bolsonaro e seu governo povoado por vilões e cúmplices conservaram certa unidade na luta. 

Mas, e agora? A taxa de contágio do Covid-19 cai a níveis controláveis, a imunização por vacina sobe e atinge patamares bastante razoáveis graças ao SUS, o medo do coronavírus arrefece, caem as máscaras e vem a guerra da Ucrânia. O jogo embaralhou. Ases, valetes, reis, damas e coringas estão perdidos sobre a mesa – alguns deles, no montinho do descarte; outros, sob a manga de quem joga sujo.

Não há razões capazes de explicar a adesão de uma ala da esquerda nacional às ganas hitleristas de Putin

Estridente e minoritária, uma ala da esquerda logo se apressou a erguer inexpugnáveis linhas de defesas para Vladimir Putin e para sua proatividade cruel e histórica. Invadir a Ucrânia para subjugá-la e forçá-la a desistir de aderir à aliança militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte seria desculpável porque o inimigo era o “sistema imperialista ocidental” liderado pelo inimigo de sempre, Estados Unidos, e seus “satélites” europeus.

Ignorando, por ingenuidade ou por má-fé, a personalidade autocrática, perversa, ditatorial e oligarca do líder russo (que está no posto em razão das imperfeições e fragilidades do sistema eleitoral da Rússia), essa ala da esquerda brasileira que é pró-Putin passou a se portar com a mesma arrogância e a mesma oclusão ao debate da extrema-direita cretina (patológica) fechada desde sempre com Bolsonaro. Não à toa, bolsonaristas integrantes do clã palaciano traçam estratégias verbais para fazer o líder deles – o presidente mais vil e acanalhado da História brasileira – diferenciar-se dos adversários “de esquerda” no território do vale-tudo das redes sociais quando o desafio é defender a invasão e os ataques desumanos da Rússia à Ucrânia.

A guerra de Putin lançou o mundo em nova “crise do petróleo”, talvez pior que a do início dos anos 1970. Em razão do aquecimento global, não teremos saída fácil porque é impensável ampliar a queima de combustíveis fósseis para fazer a América rodar ou a Europa se aquecer. Outrora desenvolvido, o agronegócio ucraniano era responsável por abastecer de trigo e milho, sobretudo, parte da China e dos vizinhos europeus. Ao menos duas safras estão comprometidas. Exportadora de insumos para a produção de fertilizantes e também produtora de commodities agrícolas, a Rússia está fora dos mercados internacionais e isso se traduz em alta de preços – ora por aquecimento de demanda externa, como ocorrerá com o frango nacional no mercado interno, ora por falta de oferta direta de insumos, como já ocorre com o potássio para a fabricação de fertilizantes.

Nesse roteiro básico de 10 linhas e 139 palavras está a síntese do como e do por que o avanço do exército russo sobre a Ucrânia impactará a economia do mundo e do Brasil. Desnecessário dizer que tudo o que atinge o mundo, afeta-nos aqui – Bolsonaro nos transformou em párias globais, mas ainda não desembarcamos do planeta. Não fosse por mais nada, “apenas” para derrotar o nosso mal maior interno – Jair Bolsonaro – parcela alguma da esquerda podia desertar da civilidade para fechar com a barbárie personificada por Putin. É inaceitável, intolerável e injustificável que alas festivas (de uma festividade mórbida, ignorante, nefasta) da esquerda brasileira sigam aplaudindo os avanços dos tanques, mísseis e caças russos contra a população de uma Nação refém de exibições de força e de boçalidade usados de forma bestial contra um povo que paga preço exorbitante por simplesmente desejar persistir com o sonho de integrar um Estado nacional. 

Não há razões capazes de explicar a adesão dessa ala minoritária da esquerda local às ganas hitleristas de Vladimir Putin. Há que se decidir: ou vencer a guerra desumana abraçada ao oligarca russo, que de resto já a perdeu ante a dinâmica da História, ou ganhar a nossa guerra particular derrotando o inimigo que nos era comum até há 15 dias, Jair Bolsonaro. As duas coisas, não dá. E nem virá.

Escrito por:

Jornalista

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