Caleidoscópio

20 de dezembro de 2020, 10:40

Luís Costa Pinto
Na noite anterior, a fim de preparar suas aulas de yoga em torno dos 108 suryas, Patrícia pediu-me para relembrar a ela o poema “A Solidão e Sua Porta” de Carlos Pena Filho em seu Livro Geral. Estávamos, eu e ela, abrindo nossos chakras para os exercícios de reflexão aos quais nos entregamos há 25 anos nos fins de dezembro: pensar sobre o que passou e sobre o que virá.
“Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha)

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo o mais que é insolvente e provisório
e de ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório”.
Carlos Pena Filho morreu em 1960, mal completados 31 anos. Acidente automobilístico. Era um intelectual florescente. Poeta tão vigoroso quanto os pernambucanos João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira. A passagem efêmera pela vida nos legou uma obra literária perene e profunda. A virtude de fazer um blend de yoga com o poeta da boemia recifense, porém, é mérito do diapasão de nossa abertura para mundo na trajetória que trilhamos até aqui e consequência desse ano capital e divisor de águas para todos nós.
Na manhã seguinte fui caminhar enquanto ela iniciava as aulas de yoga. Andar pelas cidades, em ritmo acelerado, não é para mim mero exercício físico. É, sobretudo, atitude meditativa à qual me entrego com afinco diário. Enquanto caminho, reflito sobre os problemas presentes e organizo as ideias para o futuro. Obrigo-me a executar a atividade diariamente, sete dias por semana, ao menos duas horas por dia. Ao sair do portão de casa, “A Solidão e Sua Porta”, sobretudo os versos finais – com tudo que é insolvente e provisório/ e de ainda tens uma saída: / entrar no acaso e amar o transitório – pululavam em meu cérebro. Ocorreu-me, então, a lembrança da playlist que já começara a organizar no Spotify a fim de embalar a passagem de 2020 para 2021, quando estaremos reunidos pela primeira vez em tantos meses, ao mesmo tempo, com os quatro filhos, noras, genro e neto.
Desde que flagrei um saxofonista solitário nos tuneis subterrâneos da Siegssäule, em Berlim, executando lindamente Charlie Parker num alvorecer de primavera em 1989, antes do advento de iPods, streamings de música e airpods, tive certeza que a vida seria sempre melhor quando músicas se materializassem nos nossos ouvidos a embalar memórias. Sem saber, e muito particularmente, criei privadamente a demanda por algo como o Spotify ou o Amazon Music e o YouTube Music. O resto é vida que segue… este ano, em razão da pandemia, houve tempo para organizar uma playlist que terminou por transformar o filho de Virgem que sou – virginiano de almanaque, daqueles que compram no Carnaval as passagens para o réveillon seguinte e reserva os hotéis – num amante resignado e ponderado do transitório. Desde março deste ano navegamos em modo aleatório, como a reprodução de nossas listas de músicas nas plataformas de streaming. “Deixa Vida Me Levar”, pensei, escutando mentalmente os acordes da versão de Zeca Pagodinho com Maria Bethânia que está lá minha playlist. Aí a crônica começou a martelar minha ansiedade atávica.
A aleatoriedade randômica da memória fez com que “Vida de Viajante”, extraída do show que Gonzaguinha e Luiz Gonzaga fizeram em turnê nacional pouco antes da morte – também prematura, e também decorrente de acidente de trânsito – do filho de Gonzagão. Eu, que também andei muito pelos sertões do Nordeste e algo de minha vida por lá deixei, vi lembranças embaralhadas distraírem-me do caminho. Apostei no modo. A voz segura, máscula, profunda, de Danilo Caymmi cantando “Eu Sei Que Vou Te Amar” atravessou os graves de Gonzaguinha e a sanfona do pai. Encerrado Caymmi, os acordes inconfundíveis do piano que abre “Back to Black” anuncia que Amy Winehouse traz as profundezas da alma e de seus distúrbios para me lembrar: não há perfeição numa vida. Em vida nenhuma. Tom Jobim, com um assovio, manda Amy parar – os dois teriam sido parceiros inigualáveis, caso o acaso não os tivesse posto nesse mundo em momentos diferentes! – chega com o “Samba do Avião” e minh’alma acende como os suspiros que qualquer mortal sensível dá ao contemplar o Rio de Janeiro da janela nos primeiros momentos de descida no Santos Dumont.
Quando constatei que a playlist convidava-me a bebê-la enquanto tentava capturar cada uma das miragens emblemáticas da vida no tubo do caleidoscópio das lembranças, parei n’O Melhor Bar da Cidade e abri a primeira cerveja. No compasso das batidas de meu coração, sincopado pela andança, Kaftwerk explodiu com “Tour de France”. Relaxei. Aí Paulo Vanzolini entrou com “Volta Por Cima” e olhei à frente. Havia sol no gramado, a mangueira que centraliza o quintal estava carregada de mangas, a pitangueira de pitangas, a jabuticabeira de jabuticabas. Só o abacateiro, não mais. Edith Piaf se interpôs ao bucolismo com “L’accordéoniste” e a beleza sublime de uma voz que saía do âmago de quem vivera para cantar o próprio sofrimento. Quando Caetano Veloso iniciou os primeiros versos de “Alegria, Alegria”, enchendo a mesa do bar de esperança, voltei a Carlos Pena Filho e fui amar o transitório. Não por acaso, Nossa Senhora dos Algoritmos pôs-me ao alcance das mãos, no smartphone, link para uma entrevista preciosa dada por Vinícius de Moraes a Clarice Lispector.
Ainda rolava a aula dos 108 suryas da Patrícia – foram duas aulas conjugadas – às quais faltei. Mas, como os chakras estavam abertos, não precisei nem dos Chaturangas para fazer a vida entrar pelos poros, pelas narinas, e se converter em visões de reminiscências. Em modo aleatório, girando como um tubo caleidoscópico, a vida passou como “Roda Viva”, de Chico, que também está na playlist e nem precisei que a reprodução dela fosse ativada para me sentir pião de tudo o que vivera até ali.

Escrito por:

Jornalista

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