SÃO PAULO, SP, 22.01.2016: CRISTIANO-ZANIN – Cristiano Zanin, advogado de Luis Claudio, filho de Lula. (Foto: Moacyr Lopes Junior/Folhapress)

Nem no tempo da ditadura…

13 de setembro de 2020, 18:20

A Lei 11.767 de 2008 alterou o artigo 7º do Estatuto da OAB, que pelo inciso II do artigo 7° instituiu que é direito do advogado “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.

Pois esta lei, límpida na descrição de sua finalidade, foi descumprida na quinta-feira 09/09), quando o juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, determinou cumprimento de mandado de busca e apreensão no escritório e na casa de Cristiano Zanin Martins, advogado do ex-presidente Lula. Coincidentemente, a busca se deu dois dias depois de Lula proferir um discurso contundente pelas redes sociais, que ecoou, inclusive, na imprensa estrangeira. Zanin viu a ação como “uma tentativa de intimidação” por seu trabalho de desmonte dos abusos da “lava jato”, conforme nota divulgada por seu escritório.

“É público e notório que minha atuação na advocacia desmascarou as arbitrariedades praticadas pela ‘lava jato’, as relações espúrias de seus membros com entidades públicas e privadas e sobretudo com autoridades estrangeiras. Desmascarou o lawfare e suas táticas”, afirmou Zanin, e destacou o caráter “despropositado e ilegal” de autorizar a invasão de um escritório de advocacia e da casa de um advogado.

Ao longo da semana foi comum ouvir a expressão: “nem no tempo da ditadura se viu tal atitude para com os advogados” … A frase, dita para expressar indignação quanto à invasão do escritório do Dr. Zanin, a esta altura carece de reparo.

O Dr. Antônio Modesto da Silveira era mineiro de Ponte Alta, município próximo à cidade de Uberlândia. Filho de pais separados, cresceu fazendo todo o tipo de trabalho para ajudar em casa. Desde carregar malas, buscar lenha, até empregar-se em uma pedreira. Estudou à noite e tornou-se ele mesmo professor, o que o levou a transferir-se par ao Rio de Janeiro, onde deu aulas e trabalhou na Marinha Mercante até formar-se advogado. Após o golpe de 1964, costumava descrever que, “arrastado pela cachoeira dos fatos”, mergulhou na defesa dos presos políticos.

Não eram muitos, na época, a se atreverem a tal atividade. Modesto da Silveira, como ficou conhecido, foi um dos que trabalhou em maior número de casos. Quem costumava fazer a contabilidade era Heleno Claudio Fragoso, e deixou a observação registrada no seu livro “Advocacia da liberdade: a defesa dos presos políticos”.

Modesto costuma trabalhar quase 24 horas por dia, mas num desses dias saiu do escritório relativamente “cedo”, entre 20 e 21 horas e ligou para a mulher a fim de chamá-la para ir ao Cine Paissandu, na sessão de 22h. Quando voltaram para casa, cerca de meia-noite e meia, ele percebeu um clima estranho nos arredores. Pessoas em atitudes suspeitas espalhadas pelas redondezas. Ao estacionar o carro, vários homens se aproximaram como se quisessem falar casualmente como ele. Modesto, percebendo a situação, perguntou para um deles, diretamente, para onde o levariam. O homem lhe disse que o seu destino era a Rua Barão de Mesquita (endereço temido, onde ficava o quartel da Polícia do Exército e a sede do DOI-CODI).  

Ele manteve a calma, disse que as filhas pequenas estavam dormindo e que precisava falar com a mulher. Teve a presença de espírito de entregar a ela o casaco onde estavam a agenda repleta de notas e cartas que poderiam comprometer terceiros. Pediu que trocasse aquele por um casaco mais pesado, pois estava com frio. Disse a ela também que prestasse atenção a todos os detalhes e comunicasse tudo à OAB, com o máximo de precisão possível.

A equipe seguiu para o mirante do Leblon, tendo à frente muitas viaturas, lotadas de homens armados de fuzis e metralhadoras. Ele quis saber se não iriam para o DOI-CODI, conforme um deles dissera, e recebeu como resposta que não. Antes teriam uma “diligência”. Subiram a Niemeyer, pegaram uma estradinha alternativa e na altura do número 550, cercado por um matagal, Modesto temeu ser executado. Neste momento lhe ocorreu que poderiam entrar em seu escritório e armar um roubo, “seguido de morte”. Com calma pegou a chave que estava no bolso da calça e, disfarçadamente, a jogou no mato, pela janela aberta do veículo em que estava.

Depois de pararem o carro, fingir que iam buscar alguém em uma casa isolada, voltaram para o DOI-CODI. Lá, foi levado a uma sala grande, onde um homem sentado era chamado de “chefe”, e calçava coturnos. Ao seu redor, um semicírculo de homens fortes, prontos para obedecer. O homem esticou os pés sobre a mesa e disse a ele que ali não havia “habeas corpus”. Ali o habeas corpus eram eles. E ordenou que ele começasse a falar. Modesto recitou tudo o que sabia constar dos autos dos processos dos seus clientes, conteúdo público e notório. Tinha certeza de que militares de alta patente teriam acesso ao que disse. Em seguida foi levado a uma sala imunda, com restos de sangue ressecado e outros vestígios de tortura. Havia um revólver 38 sobre a mesa e um aparelho de choques. A cena era puro constrangimento.

Nesse ínterim, a OAB havia tomado conhecimento do sequestro, pela sua mulher. Rapidamente Evaristo de Moraes Filho e George Tavares foram nomeados seus advogados e agiram rápido. No dia seguinte à tarde conseguiram libertá-lo.

A violência sofrida por Modesto da Silveira, dá bem a dimensão de onde podem chegar os algozes, quando querem ignorar leis, como agora o fizeram invadindo o escritório do Dr. Zanin. Antes que cheguemos à sala com restos de sangue ressecado, é bom cuidarmos para que o judiciário, agora sob nova direção, fique atento aos desmandos e arbitrariedades.

(O relato do sequestro sofrido pelo advogado de presos políticos, Antônio Modesto da Silveira, consta do livro “Os advogados da Ditadura de 1964 – A defesa dos presos políticos n”, organizado por Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins).

Escrito por:

Jornalista. Passou pelos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora-pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" e "Imaculada", membro do Jornalistas pela Democracia

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