João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, foi espancado e morto por dois policiais brancos em Porto Alegre (Foto: Reprodução/Redes sociais)

Ser negro neste país racista

26 de novembro de 2020, 18:06

O assassinato de João Alberto Silveira Freitas por dois seguranças, um deles da Polícia Militar, em um supermercado Carrefour em Porto Alegre teve um forte impacto mundo afora. Primeiro, por se tratar de uma cadeia comercial espalhada pelo mapa. E, segundo, por não ser a primeira vez em que o grupo aparece como cenário de violência contra negros.

Deveria servir também para uma cuidadosa investigação sobre as empresas particulares de segurança, infiltradas ou diretamente controladas por agentes policiais. Reúnem centenas de milhares de empregados, boa parte deles também das polícias, agem com violência desmedida – principalmente contra negros – e sem controle eficaz algum.

As imagens tremendas circularam por tudo que é lado, provocando reações que partiram de Michelle Bachelet, da ONU, a um sem fim de personalidades de todos os campos. As denúncias e críticas ao racismo estrutural brasileiro ganharam volume e peso.

Como era de se esperar, tanto de Jair Messias como de seu vice, o general empijamado Hamilton Mourão, as reações foram absolutamente beócias. Tentando um inesperado e insuspeito grau de sofisticação, o autor do texto lido aos tropeços por Jair Messias (é impressionante como ele não consegue ler com fluidez) lançou mão da palavra ‘daltônico’. 

Suponho que o tal redator tenha tido algum trabalho para explicar ao Ogro o significado da palavra, embora na esmagadora maioria dos casos a discromatopsia – é assim que os médicos se referem à doença – registre apenas a impossibilidade de diferenciar algumas cores, e não todas.

Em todo caso, vamos lá: foi só mais um pronunciamento confuso e de pura negação do óbvio proferido por Jair Messias.

Mais curto, seco e direto foi o de Hamilton Mourão: para ele, exemplo absoluto de mestiçagem, racismo existe é nos Estados Unidos, onde diz ter morado. Aqui, nem pensar. Do que enfrentou quando morou lá, nem um pio.

Esse tipo de afirmação, tanto de um como se outro, mostra algo além de ignorância, atropelo da realidade e estupidez: são declarações absoluta e irremediavelmente racistas. 

Sobram jorros de dados concretos indicando os efeitos do racismo presente em cada segundo de cada minuto de cada hora deste nosso país. 

A cada vinte e três minutos de cada dia um negro é morto de forma violenta no Brasil. Aliás, cerca de 74% das mortes por arma são de negros. 

Em todos, absolutamente todos os lares deste país, a renda familiar de brancos e brancas é quase o dobro de negros e negras. 

O racismo, muito além de cifras e porcentagens, pode – e deveria – ser sentido nos menores gestos do cotidiano de cada um de nós.

No belíssimo e certeiro documentário “Lugar de Fala”, feito por meu filho Felipe Nepomuceno, um ator negro menciona, em seu depoimento, algo que experimenta todos os dias ao andar na rua. 

Diz ele que quando uma mulher percebe que atrás dela vem um negro, imediatamente trata de proteger a bolsa. Quando o passante é um branco, nada disso.

Quantas vezes algum de nós, muitos de nós, não temos atitude semelhante? Se isso não é um racismo talvez até mesmo inconsciente, mas absolutamente estrutural, o que seria?

O brutal assassinato de João Alberto, o Beto Soldador, ganhou o mundo porque as imagens bestiais foram gravadas e expostas. 

Terrível é saber que essas mesmas imagens se repetem nas mãos da polícia a cada hora de cada dia em qualquer das favelas e subúrbios espalhados ao longo deste país destrambelhado e perverso. 

É mais que hora para que cada um de nós tome consciência dessa cruel realidade. E entenda de uma vez por todas que quem nega o racismo no Brasil é, mais que um imbecil, um racista extremo.

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Escrito por:

Eric Nepomuceno é jornalista e escritor

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